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Na madrugada de 7 de maio do ano passado, três dias antes do Dia das Mães, Christiane Yared recebeu o caixão lacrado com o corpo de seu filho Gilmar Rafael Yared, morto aos 26 anos. Ela não chegou a ver o que restou dele após a brutal colisão, numa avenida de Curitiba, com o carro blindado do deputado Carli Filho, de família de políticos do Paraná.

Segundo a acusação, o deputado, da mesma idade da vítima, estava embriagado, corria a 160 quilômetros por hora. Ele perdera a carteira de habilitação devido a dezenas de multas, 23 delas por excesso de velocidade. O carro do deputado cortou o outro pelo meio, degolando o filho de Christiane. Um ano e quatro meses após a tragédia, a promotora Lucia Ignez Giacomitti Andrich determinou que Carli Filho seja levado a júri popular.

QUEM É

Casada, pastora evangélica e dona de café colonial em Curitiba, perdeu o filho do meio, Gilmar Rafael Yared, em desastre ocorrido em maio de 2009

O QUE FEZ

Criou o Instituto Paz no Trânsito para ajudar famílias de vítimas de trânsito. A decisão foi comemorada discretamente pela família da vítima como um passo em direção à justiça. Pastora evangélica e dona de uma empresa de bolos e doces em Curitiba, Christiane não desmanchou o quarto do filho até hoje. As roupas dele são usadas pelo pai e pelo irmão. “Para quem acha isso macabro”, disse em entrevista a ÉPOCA, “eu respondo que temos só lembranças boas de Rafael e por isso está tudo do mesmo jeitinho que ele deixou. Meu laptop fica ali. Deito na cama. Faço minhas orações. É o meu momento com Deus e com ele. Sei que consegui fazer meu papel de mãe. Meu filho falava quatro línguas e estava terminando a segunda faculdade. Ele dizia: ‘Eu amadureci cedo’. E se foi cedo demais”.

ÉPOCA – Qual foi sua reação ao saber que o deputado Carli Filho, que provocou a morte de seu filho, irá a júri popular?

Christiane Yared – Eu não consigo trazer meu filho de volta, por isso não posso dizer que estou feliz. Mas eu tenho outros filhos, minha neta. Todos nós dependemos do trânsito. Motoristas, passageiros ou pedestres. Quando recorremos à Justiça, é para os vivos, e não para os mortos. Um jovem s deputado riquíssimo, que havia bebido com amigos quatro garrafas de vinho, em alta velocidade, sem carteira, matou meu filho. Isso não é um acidente. Quando rapazes assim se acham semideuses e não são punidos, a população faz uma leitura de impunidade. Mas, se quem é poderoso e rico vai a júri popular, isso faz com que todos pensem melhor antes de matar os outros no trânsito.

ÉPOCA – O que mudou em sua vida desde a tragédia?

Christiane – Montei um instituto chamado Paz no Trânsito. Atendo famílias que perderam maridos, mulheres, filhos. A perda do filho é sempre mais doída. A gente não sonha o sonho do marido ou do irmão. A gente sonha o sonho do filho. Quando as pessoas dizem que o tempo é remédio, eu respondo: é remédio amargo demais. A mãe fica acabada, sofrida. O tempo só nos ajuda a ter mais paciência.

ÉPOCA – Como a senhora conseguiu um pouco de paz?

Christiane – É como a recuperação de um viciado ou um doente. Um dia por vez. Eu entendi que minha dor só diminui quando eu ajudo alguém. Estendo a mão. Com o instituto, dou apoio psicológico ou espiritual, ajudo a contratar advogado ou um perito. Por enquanto, estou bancando tudo do instituto. Não existe no país nenhum apoio governamental, nem entidades, nem igrejas, nem pastorais que abracem a família que perde seu filho assim. Dividimos nossa dor para entender o que podemos fazer. Eu estou atendendo uma família de milionários. Há quatro anos, o casal perdeu a filha de 14 anos. A menina morreu porque alguém estava alcoolizado no carro.

ÉPOCA – De quem é a culpa?

Christiane – Não é de Deus. Deus não tem nada a ver com isso. Se alguém é culpado, somos nós. Pagamos impostos e vemos esses candidatos vomitando bobagem. Ninguém se queixa. O problema é sempre com o outro. Os jovens não param de morrer: 100 por dia perdem a vida no trânsito, entre 17 e 27 anos. Os cemitérios estão cheios de sonhos. No feriadão de 7 de setembro, morreram 38 pessoas no trânsito só no Paraná. A média diária no país é de 180 mortos. Esses são os que morrem. Fora os amputados, os paraplégicos, os que ficam cegos.

ÉPOCA – Como reduzir esses índices?

Christiane – Só tem uma maneira. São três as linhas de ação: conscientização, fiscalização e punição. Nós vamos aos colégios. Neste mês, planejamos uma passeata com 530 estudantes durante a semana do trânsito. O que nós queremos é que esses assassinos do trânsito, que disputam rachas e bebem, entendam que vão ser punidos e irão para a cadeia. Porque saem dos limites da vida deles para invadir a nossa vida, e é irreparável. Os traumas destroem muitas famílias. Fica um rombo, um buraco, mesmo que aos poucos se acalme esse desespero no coração.

ÉPOCA – O deputado Carli Filho alguma vez lhe pediu perdão?

Christiane – Quando perguntaram isso a ele, respondeu que não adiantava porque ele não traria meu filho de volta. Ele não entende que o perdão seria para ele se sentir melhor. O perdão é para que a mãe não amaldiçoe o matador, para que ele mesmo tenha um pouco de paz e sinta menos culpa. Mas o Carli Filho é um fruto de seu meio. Tem cinco carros na garagem, quatro importados. Ele havia se envolvido num acidente uma semana antes.

ÉPOCA – Houve alguma tentativa de inocentar o atropelador?

Christiane – Aqui em Curitiba correu muito dinheiro. O hospital fechou uma ala inteirinha. Guardaram por nove dias esse exame do sangue do atropelador. Como o sangue foi tirado sem a permissão dele, não foi considerado como prova. O próprio juiz decidiu descartar para não se arriscar a uma anulação do processo, e também porque estava claro que ele estava alcoolizado.

ÉPOCA – A senhora leu sobre o atropelamento do filho da atriz Cissa Guimarães, no Rio de Janeiro?

Christiane – Eu me emocionei muito, fiquei indignada com a propina exigida pelos policiais e com a tentativa do pai de encobrir o acidente. Escrevi uma carta para Cissa. O rapaz tinha o mesmo nome de meu filho, Rafael. Existe um movimento forte hoje das vítimas de trânsito em Minas. Mas precisamos de 1,4 milhão de assinaturas para mudar as leis. Nossa proposta é que seja obrigatória a coleta de sangue. E que todo incidente com mortes envolvendo racha, drogas, alta velocidade e motoristas sem habilitação passe a ser considerado homicídio doloso (com intenção de matar), para punir os assassinos do trânsito. É preciso também incluir nas escolas matérias que abranjam regras de trânsito. Eu tenho falado para jovens, 1.000 jovens às vezes. Todos concordam, e alguns vêm me dizer que, depois do acidente de meu filho, nunca mais dirigiram depois de beber. Eles me dizem: “Foi tão impactante que eu não quero isso para a minha mãe”.

ÉPOCA – A Cissa respondeu?

Christiane – Ela não falou nada, parece que só quer esquecer. É uma pena. Porque, se a Cissa se move, se todos se movem, a gente muda este país. Eu não enterrei, eu plantei meu filho.

ÉPOCA – Ver Carli Filho submetido a júri popular lhe dá esperança na Justiça?

Christiane – Eu ansiava por isso. Ele será condenado. Se vai para a cadeia, aí já não sei, duvido. Talvez a família decida tirá-lo do país. É uma infelicidade ver que ninguém vai preso por esse tipo de crime. Para um assassino, a melhor solução parece ser matar no trânsito, porque não há punição. Nossa legislação equivale a uma licença para matar. É uma vergonha. Espero que não precise morrer um filho de cada família deste país para que algo seja feito e a legislação mude.

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